Acidente de (tele)trabalho

 

No contexto epidemiológico em que vivemos há cerca de dois anos e por força das medidas excecionais para combater o coronavírus, muitos trabalhadores encontram-se a trabalhar a partir dos seus domicílios em regime de teletrabalho.

Foi recentemente difundida pela comunicação social uma decisão do Tribunal Federal Social da Alemanha (Bundessozialgericht) em que estava em causa aferir se determinada factualidade consistia ou não na ocorrência de um acidente de trabalho. Em causa estava o caso de um homem que fraturou a coluna na sequência de ter caído nas escadas do seu domicílio enquanto fazia o percurso entre o quarto e a divisão desse mesmo domicílio onde se encontrava secretária para começar a trabalhar.

Considerou aquele tribunal superior alemão que “a primeira viagem matinal da cama ao escritório de casa é uma rota de trabalho segurada. O queixoso sofreu um acidente de trabalho quando caiu a caminho do seu escritório em casa, pela manhã. Se a atividade segurada for exercida no domicílio do segurado ou noutro local, a cobertura do seguro é assegurada na mesma medida em que a atividade é exercida nas instalações da empresa”. Referiu o tribunal que a curta viagem da cama para a secretária não deixa de ser uma deslocação para o trabalho, logo, está abrangida pelo seguro de acidentes de trabalho. É também referido que a vítima começou a trabalhar sem ter tomado o pequeno-almoço. Se o tivesse feito a queda não seria considerada para efeitos de seguro de acidentes de trabalho, porque o seguro só cobre a primeira viagem para o trabalho, sugerindo o Bundessozialgericht que uma ida ao café ou à cozinha antes de ir para o emprego não poderia ser considerada. Se a atividade segurada for exercida no domicílio do segurado ou noutro local, a cobertura do seguro é fornecida na mesma medida que quando a atividade é exercida nas instalações da empresa. Assim, o tribunal decidiu a favor do trabalhador considerando aquele evento como sendo acidente de trabalho e condenou a seguradora de acidentes de trabalho a pagar uma indemnização ao trabalhador sinistrado.

A questão que se impõe é a seguinte: se fosse em Portugal, a situação também seria qualificada como sendo um acidente de trabalho? Uma decisão como a daquele tribunal alemão seria possível em Portugal. A Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, consagra no seu artigo 9.º o conceito de acidente de trabalho in itinere, isto é, no trajeto de ida e volta entre o domicílio e o local de trabalho. Claro está que este conceito foi pensado para as situações mais típicas em que o trabalhador sai da sua residência habitual ou ocasional e realiza uma viagem até ao seu local de trabalho e, enquanto faz esse percurso, ocorre um acidente. Portanto, acidente de trabalho in itinere é o ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador, desde do momento em que tenha transposto a porta de saída do domicílio e desde que se desloque para o local de trabalho, fazendo o trajeto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, sendo que a lei até prevê que esse trajeto normal possa ter interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, acrescentando que se entende como “necessidades atendíveis” as necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador, como por exemplo a satisfação de necessidades fisiológicas ou levar o filho à escola.

Nessa medida, também o acidente que ocorreu no percurso feito do quarto para o escritório situado noutra divisão da habitação poderá ser enquadrado como sendo um acidente de trabalho.

É essencial que o empregador comunique à seguradora a morada de residência dos trabalhadores que se encontram em regime teletrabalho, devendo, inclusive, constar do acordo de teletrabalho a menção expressa do local e horário de trabalho. Questão particularmente sensível é aquela em que o trabalhador se encontra num regime híbrido, isto é, que trabalha certos dias da semana nas instalações pertencentes ao empregador e noutros dias no seu domicílio. É que a seguradora de acidentes de trabalho pode muito bem pôr em causa se determinado evento ocorreu no domicílio do trabalhador e dentro do horário de trabalho. Tal é se extrema relevância, pois a lei refere que apenas são considerados como acidente de trabalho aqueles que ocorram no local e tempo de trabalho. Portanto, é muito importante que o local e o horário de trabalho estejam bem explícitos no acordo de teletrabalho celebrado entre o trabalhador e o empregador.

A Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro, que modifica os regimes de teletrabalho e de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, que entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2022, prevê expressamente que o seguro de acidentes de trabalho é aplicável às situações em que o trabalho é prestado em regime de teletrabalho.